Longe vão os tempos em que a palavra do médico era lei absoluta. O acesso mais facilitado à informação explica parte, mas não todo o fenómeno. E há quem questione os efeitos da multiplicação de dados, tantas vezes contraditórios, na confiança dos pais.
Quando nasceu, Ana pouco passava dos dois quilos e meio. E quando chorava, recorda a mãe, Sofia, “parecia um gatinho a miar, mal se ouvia”. Mas este foi sol de pouca dura. “Com um mês e meio, o choro era bem mais forte e acontecia um fenómeno que, das primeiras vezes, nos punha bastante assustados: com a força que ela fazia, o coto do umbigo saltava para fora e só voltava ao lugar se nós o colocássemos. Na consulta seguinte no pediatra perguntei o que era preciso fazer e a resposta foi curta. ‘Nada, isso vai ao sítio e se não for pode ser operada por volta dos quatro anos’”.
Sofia e César não ficaram descansados. “Lembro-me que só não pedi outra opinião porque, tirando este assunto, o médico tinha toda a nossa confiança como, aliás, continua a acontecer até hoje. Mas não deixei andar. Cheguei à farmácia, comprei algumas faixas para o umbigo e a Ana passou a usá-las até perto dos seis meses. O engraçado é que quando o médico a viu, sem a faixa, naturalmente, congratulou-se com a forma como o umbigo estava ‘bonito’ e eu só me ria por dentro e pensava que não lhe ter dito nada e avançado, em especial quando não se tratava de medicação ou uma doença, tinha sido a melhor coisa a fazer”.
Relações diferentes
Até há alguns anos, ir ao médico – e o pediatra não era exceção – marcava a vida de muita gente. Preparava-se a consulta com dias de antecedência, vestiam-se as melhores roupas e, depois, seguiam-se religiosamente e sem discutir, as indicações e a medicação decididas pelo “senhor doutor”. Hoje, a relação entre os pacientes e os profissionais de saúde é completamente diferente: o aumento do nível de escolarização e a grande facilidade no acesso a outras fontes de informação levaram a uma equiparação de estatuto, que é visível no modo como se age após o atendimento.
Foi o que aconteceu com os pais da Ana, em relação ao umbigo da filha, e também com os pais do Ricardo. Antes de completar dois anos, o bebé “passou meses e meses com problemas gastrointestinais, com muita diarreia e a comer muito pouco. Perdeu peso e bastava olhar para a cara dele para ver isso. No entanto, quando perguntei ao médico se lhe devia dar algum suplemento, respondeu-me que não valia a pena. Mas eu sentia o meu filho tão levezinho que comprei vitaminas e dei mesmo” recorda Inês. “O pediatra acabou por concordar que o Ricardo estava mesmo magrito e acabei por lhe falar das vitaminas. Não me disse nem que concordava nem que discordava e não me arrependo de ter agido um bocado à revelia. Eu é que via todos os dias como o miúdo andava!”.
“A relação com os médicos em geral, e os pediatras em particular, foi muito alterada nas últimas décadas, sendo que há uma relação mais colaborativa entre ambas as partes, com partilha de perspetivas e possibilidades. Os dados da ciência (em constante evolução) estão mais acessíveis e são vários os temas sobre os quais os pais já têm uma opinião formada à partida”, considera a terapeuta familiar Catarina Rivero, para quem muitas vezes, “quando surge um problema de saúde mais complexo, por exemplo, são muitos os pais que procuram diversos especialistas para ter opiniões diferentes, ou porque não gostaram da postura de determinado médico, ou tão só não sentiram a empatia que esperavam”. Isto porque, nos dias de hoje, “não é pedido ao médico que apenas diagnostique e trate, mas que ajude as famílias e tomarem diversas decisões em áreas diversificadas, como a educação, comportamento, relações e emoções”.
Dito assim, parece que tudo corre sobre rodas no nível de confiança das famílias, o que, de acordo com a pediatra Maria João Brito, está longe de ser verdade. “A forma como pais, médico e criança interagem sofreu grandes modificações nos últimos anos e acredito que isto tem a ver com as alterações no modo de vida. Longe de defender um regresso ao passado, o facto é que quando as mães e avós passavam mais tempo com os filhos e netos conheciam-nos de uma forma que lhes permitiam distinguir uma situação de saúde pouco grave e passageira, que poderia ser resolvida em casa, de uma situação mais séria que as levava ao médico. Não se ia às urgências por uma simples constipação, como hoje acontece!”